Coronavírus e Brumadinho: abandono engole local onde barragem se rompeu

Depois de uma hora esperando o transporte público debaixo de chuva, Maria Gonçalves Braga, de 82 anos, tentou seguir num micro-ônibus de trabalhadores. Como o destino era outro, teve que aguardar carona

Depois de uma hora esperando o transporte público debaixo de chuva, Maria Gonçalves Braga, de 82 anos, tentou seguir num micro-ônibus de trabalhadores. Como o destino era outro, teve que aguardar carona

Arrasado por rompimento de barragem, devastado pela contagem de mortos, povoado vê o escasso comércio fechar, o transporte acabar, nesta terceira tragédia no Córrego do Feijão

Brumadinho – Debaixo da forte chuva sobre o Bairro Córrego do Feijão, em Brumadinho, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, a dona de casa Maria Gonçalves Braga, de 82 anos, se abriga sob a sombrinha, à espera de uma carona. Quer retornar a Casa Branca, outro bairro do município, a 13 quilômetros, mas, desde que a pandemia do novo coronavírus impôs restrições ao convívio social, não há mais acesso ao transporte público. O risco representado pela pandemia é a terceira onda de sofrimento que surpreende o povoado da Grande BH. Primeiro, foi a tragédia do rompimento da Barragem B1, da Mina Córrego do Feijão, operada pela mineradora Vale. Depois, a contagem dos mortos e a sofrida operação resgate das vítimas, 270 no total, 11 ainda desaparecidas.

Agora, chegaram as dificuldades da quarentena, que, se são incomparavelmente menores, agravam os transtornos das duas primeiras. Depois de uma hora esperando, já molhada e com insistente tosse rouca, dona Maria viu parar um micro-ônibus de transporte de trabalhadores. Contudo, o veículo não seguia para o destino da idosa. “É uma maldade o que estão fazendo com o povo daqui. Estão esquecidos. Queria ajudar, mas vou para outro lado”, disse o motorista Sérgio Pinto, de 45 anos.

Resignada, Maria Gonçalves segue esperando uma carona, enquanto diz não ter medo da doença causada pelo novo coronavírus. “Preciso é ir para casa. Não tenho medo de nada, não. Se nem a barragem me pegou… Aqui, a gente está abandonada. Mas já estou mais para lá do que para cá… Estou é na hora de morrer, já”, desabafou, em um misto de resignação e cansaço.

Após um ano do desastre, a situação do Córrego do Feijão já não permitia prever a retomada da vida normal. Muita gente atormentada pela avalanche de rejeitos tinha deixado a comunidade; outros haviam se retraído do convívio social. Gente que passou a se apoiar em medicamentos para ansiedade e depressão, que tiveram seu uso ampliado em 79% e 56%, respectivamente, como mostrou com exclusividade reportagem do Estado de Minas em janeiro.

O êxodo imediatamente se refletiu no fechamento de pontos de comércio. Em um nível tamanho que, hoje, os portais de armação metálica que a Prefeitura de Brumadinho instalou nos acessos ao Córrego do Feijão com o aviso “Fique em casa” – para proteger as pessoas da disseminação da infecção viral – soam como alertas inúteis. Não porque haja desrespeito sistemático, como se vê em outros lugares, mas porque não sobrou quase ninguém para ler.

Os pequenos armazéns, bares e farmácia que abasteciam os habitantes praticamente desapareceram. Mesmo os comerciantes que resistiram às vacas magras após o rompimento, não suportaram o golpe da quarentena imposta pelo novo coronavírus. Até as estruturas de apoio comunitário, como a Casa Rosa, que prestava auxílio assistencial e ensinava ofícios, também se viram afetadas e obrigadas a fechar as portas. As praças onde poucas pessoas ainda se encontravam para um dedo de prosa sobre a vida, o andamento das ações trabalhistas e indenizações tornaram-se desertas.

SOLIDÃO

Sozinhos, os que ficaram relatam a angústia de se sentirem abandonados e sem saber qual será seu futuro. “O comércio fechou todo. Agora, mantimentos e medicamentos, tudo se precisa comprar no Centro de Brumadinho (a 12 quilômetros). Só que não vêm mais ônibus. Nem da prefeitura e nem da Vale, por causa da doença. Táxi para ir e voltar custa R$ 70. Um absurdo. Com isso, minha filha fica sem os remédios de bronquite e o posto de saúde só funciona com agendamento”, reclama a ajudante de serviços gerais Claudineia Carvalho Oliveira, de 36 anos.

Com a tragédia, Claudineia perdeu um sobrinho, se separou do marido e hoje faz uso de medicamentos e se trata com psicólogos. “A gente só vive com remédio psiquiátrico, senão, não cria vontade nem de sair de casa. Não dorme. Não vive mais”, lamenta.

Uma outra mulher, que pede para não ser identificada por ter medo de perder seu emprego, disse ter acabado de ter as férias antecipadas pela Vale em uma das ações sociais, e não sabe o que vai fazer. “Se todos daqui forem embora, meu emprego vai acabar. Já está difícil, porque moro de aluguel e o dono da casa está vendendo o imóvel para a Vale. Um aluguel em Brumadinho, de casa simples, aumentou demais. Está em R$ 600 ou mais”, afirma a funcionária.

‘Se forem embora, vamos ter de fechar’

Em um dia de semana normal, o único ponto de comércio que foi encontrado em funcionamento pela equipe do EM foi o restaurante ao lado do Centro Comunitário. A clientela ali se resume a 40 funcionários de uma empresa que presta serviços para a Vale e que podem ir embora assim que o contrato terminar ou for suspenso. Os donos do estabelecimento, que são idosos e têm doenças crônicas, estão recolhidos por causa da COVID-19, restando aos filhos preparar as refeições em um fogão a lenha e manter o atendimento.

“Chegávamos a servir 180 pessoas antes do rompimento. Fomos a zero depois que as buscas ficaram só com os bombeiros e as pessoas foram indo embora. Sobrou pra gente alimentar os funcionários dessa firma. Se forem embora, pelo jeito, vamos ter de fechar as portas”, lamenta Gleice Cristina Monteiro, de 41, que está tocando o negócio. Com a COVID-19, seu trabalho ficou ainda mais difícil. “Tudo do que precisamos, temos de ir a Brumadinho buscar. E a maioria dos supermercados limita as compras. Só pode três garrafas de óleo, três sacos de arroz… Tudo está mais caro para nós”, lamenta.

Durante os esforços pelo resgate de pessoas atingidas pela avalanche de mais de 9 milhões de metros cúbicos de rejeitos que desceram após o rompimento da Barragem B1 da Mina Córrego do Feijão, o povoado de mesmo nome tinha movimentação intensa. Equipes de socorristas, policiais, bombeiros, voluntários, funcionários da Vale, moradores e parentes de pessoas desaparecidas congestionavam as apertadas vias desde o dia 25 de janeiro de 2019.

Mas o tempo passou. As buscas localizaram quase todos os mortos, restando ainda recuperar 11 corpos. Quando se instalou a ameaça da COVID-19, até as operações de busca dos bombeiros foram interrompidas. O ambiente, antes movimentado, agora se encontra desolado. Difícil definir qual o cenário pior.

FONTE (texto e imagem): em.com.br