Era dia 25 de janeiro, uma sexta-feira como outra qualquer
Coluna Especial – jornalista Valdir de Castro Oliveira
Tinha acabado de almoçar quando alguém ligou para a Cidinha, minha esposa, dizendo a ela que algo de grave tinha acontecido nas instalações da Vale lá pelos lados do Córrego do Feijão. Neste telefonema a pessoa disse que corria o boato de que ocorrera o rompimento de uma das barragens da Vale naquela localidade e que um mar de lama avançava através deste córrego em direção ao Rio Paraopeba e que poderiam inundar Brumadinho.
Mas a pessoa que ligou não tinha mais do que estas informações e talvez por isso mesmo manteve este possível acontecimento como uma hipótese pouco plausível, já que até então a Vale, através dos seus boletins noticiosos dirigidos à população, sempre tecia reiteradas loas sobre a eficácia do seu sistema de segurança e de seu sistema de alarmes caso acontecesse alguma coisa em uma de suas barragens. Como não soou nenhum alarme nas últimas horas, a dúvida sobre qualquer possível acontecimento nesse sentido ficou no ar.
Preocupado com este possível acontecimento, preparei-me para ir para Belo Horizonte para mais uma sessão de hemodiálise no Hospital Felício Rocho, rotina que mantenho três vezes por semana desde 2005 no horário de 17h às 21h desde que fui diagnosticado com insuficiência renal crônica. Fazia rotineiramente este trajeto três vezes por semana indo de ônibus à tarde e voltando à noite para Brumadinho em um carro da Secretaria de Saúde junto com outros pacientes de hemodiálise.
E nesta sexta-feira do dia 25 de janeiro, em frente ao antigo almoxarifado da prefeitura, fiquei esperando o ônibus neste ponto e que de lá saía pontualmente às 13h30.
Mas nesse dia ele não chegou. Deu 14h e nada dele aparecer, o que me deixou preocupado, pois a minha sessão de hemodiálise estava prevista para acontecer de 17h as 21h daquele dia. Afinal, o trajeto dessa viagem durava cerca de duas horas.
Liguei para a Saritur, mas o telefone tocou, tocou e ninguém atendeu.
Desencontros
Sem saber a razão do atraso do ônibus e da mudez do telefone da Saritur, desconfiei logo que, de fato, alguma coisa grave tinha acontecido em Brumadinho sem saber exatamente o que. Liguei para o chefe do setor de Transportes da Secretaria de Saúde de Brumadinho, o Celinho, e perguntei a ele se tinha algum carro disponível para me levar para Belo Horizonte já que não poderia faltar a sessão de hemodiálise prevista.
Educadamente, ele me respondeu que alguma coisa grave tinha acontecido no Córrego do Feijão e que recebera ordens para deixar todos os carros e motoristas do setor de prontidão e a disposição desse suposto acontecimento que ele também não sabia explicar direito o que era e qual a gravidade da situação.
E ele aproveitou para me avisar que a ponte da cidade sobre o Rio Paraopeba estava interditada impedindo assim as idas e vindas de carros para Belo Horizonte quanto para outras localidades mais próximas como Mário Campos, Sarzedo, Ibirité ou Barreiro.
Preocupado, liguei para a minha esposa, Cidinha, pedindo que ela fosse me buscar no ponto de ônibus. Já em casa liguei para o caseiro do meu sítio em Conceição de Itaguá e pedi a ele que me levasse de carro de Brumadinho até o Hospital Felício Rocho em Belo Horizonte. Ele prontamente aquiesceu do pedido e fui para Conceição de Itaguá de onde iriámos até São Joaquim de Bicas onde pegaríamos a BR-381 rumo a Belo Horizonte.
Viajando por este trajeto sintonizei o rádio do carro que mais chiava do que falava por causa do trecho montanhoso por onde estávamos passando. Apesar disso, aos poucos, fui tomando conhecimento pelo rádio da magnitude do que tinha acontecido no Córrego do Feijão.
Como tinha dois sobrinhos que lá trabalhavam, o Marlon e o Sandro, liguei do meu celular para um e outro, mas nenhum deles me atendeu.
Deixei passar alguns minutos e liguei para a Cidinha quando ela me disse que também tentou ligar para os dois sem também obter algum resultado. “Só dá caixa postal!!”, disse-me ela assustada.
As imagens de uma tragédia no hospital
Cheguei ao Hospital Felício Rocho por volta de quase 17 horas e sentei na poltrona destinada aos pacientes para fazer mais uma sessão de hemodiálise. Depois de ligado aos aparelhos e já acomodado, meu olhar foi atraído para a televisão disponibilizada para os pacientes do box de hemodiálise e que naquele momento estava sintonizada na TV Record. Fiquei apavorado com as imagens dramáticas que ela vinha repetidamente mostrando e, mais tenso e apavorado fiquei quando identifiquei nestas cenas as instalações da Vale no Córrego do Feijão e o exato momento em que ocorria o rompimento da barragem de rejeitos B-6 liberando milhões de litros de lama tóxica que desciam o morro destruindo tudo o que encontravam pela frente.
A televisão indicava o horário deste acontecimento: 12h28.
Ainda através dessas imagens era possível de ver também algumas pessoas tentando escapar daquele dantesco espetáculo.
Presenciei ainda de como os vagões de uma composição ferroviária para transporte de minério de ferros iam sendo empilhados uns aos outros empurrados pela lama gerando uma verdadeira expressão estética do horror.
Neste ritmo frenético observei que a lama descia morro abaixo até atingir os escritórios e o restaurante da Vale onde dezenas de trabalhadores neste momento estavam almoçando ou terminando de almoçar.
E, mais tenso e preocupado fiquei por saber que meus sobrinhos almoçavam neste restaurante exatamente no horário em que aconteceu esta tragédia.
E, desviando um pouco o olhar da televisão, tentei ligar novamente para eles sem sucesso. Em seguida liguei novamente para a Cidinha e ela me informou tensa que também tinha tentado falar com eles sem obter sucesso.
E continuando a ver estas imagens dramáticas na televisão, minha pressão arterial foi subindo, subindo e minha respiração ficando cada vez mais difícil. Os anjos azuis, como eu chamo os auxiliares de enfermagem que nos acompanham diretamente durante as sessões de hemodiálise, tentavam me socorrer. Alertado por eles sobre o meu estado, não demorou muito e o médico nefrologista de plantão, o Dr. Gustavo, veio logo em meu socorro e, não sei exatamente o que me ministrou, mas melhorei um pouco.
Tentando descobrir a razão daquele meu mal-estar e sabendo que eu sou de Brumadinho, ele olhou para as imagens da televisão e para mim e deduziu imediatamente sobre o que estava a me provocar aquela grave crise de ansiedade.
Não teve dúvidas e pediu a um dos anjos azuis que desligasse a televisão.
Desinformações
E nesse dia não pude voltar a Brumadinho. Não havia carros da Secretaria de Saúde disponíveis e as informações sobre a interdição de estradas e de pontes em Brumadinho desestimulava esta volta.
Diante disso resolvi ir para a casa de meu filho, o Davi, onde fiquei hospedado. De lá pude acompanhar por telefone as dramáticas movimentações de muitas pessoas para localizar seus parentes e amigos e que naquele dia estavam trabalhando nas instalações da Vale no Córrego do Feijão. Fiquei sabendo que algumas foram de hospital em hospital, na polícia ou ligavam freneticamente umas para as outras em meio a um turbilhão de desinformações que grassava naquele momento em Brumadinho na esperança de saber o que havia acontecido com elas.
De volta a Brumadinho
Apenas no sábado consegui voltar a Brumadinho e, a partir deste momento, pude de perto acompanhar os dramas e as dores dos familiares, amigos e conhecidos das possíveis vítimas dessa tragédia que aos poucos foram formando uma rede de solidariedade já que, em uma cidade pequena, todo mundo se torna meio parente, amigo ou compadre uns dos outros na alegria e na dor.
E no decorrer fatídico desse acontecimento observava de como as pessoas olhavam apreensivas os céus, principalmente no povoado do Córrego do Feijão, e testemunhavam o voo rasante dos helicópteros dos Bombeiros trazendo dependurado em seu sistema de pouso mais um cadáver de uma das vítimas dessa tragédia, ou seja, mais uma das nossas 272 joias, denominação que passou a ser utilizada pelos amigos e parentes para designar a vítimas fatais dessa tragédia para mostrar valor que elas tinham para seus amigos, parentes e conterrâneos.
Em Brumadinho as pessoas aguçavam bem os ouvidos ao ouvirem os primeiros acordes das Bachianas Brasileiras tocando nos altos-falantes da Igreja Matriz prenunciando o velório de mais uma dessas 272 joias mortas por esta tragédia.
Passado este dia dramático, revoltados ficamos ao descobrir que se a Vale tivesse tido mais preocupação com a segurança e o bem-estar das pessoas e o meio ambiente do que com o aumento constante da extração de minério de ferro de nossas montanhas, talvez esta tragédia pudesse ter sido evitada.
E ela sabia que esta tragédia era uma probabilidade plausível, como revelaram depois as primeiras investigações a este respeito.
E desse dia em diante começaram as brigas daqui e briga dali, seja na justiça, nas ruas, na mídia ou nas redes sociais, para que o município e os parentes das vítimas tenham devidamente reparados as suas perdas e que os responsáveis por essa tragédia sejam exemplarmente punidos, embora saibamos que nada disso irá aplacar a dor dos parentes e amigos das nossas 272 joias perdidas (contabilizamos aqui dois nascituros) e tampouco reparar integralmente os graves prejuízos provocados contra o nosso meio ambiente.
Mas a luta continua …